Pobre de nós cantores!
- Marcio da Rosa
- 1 de set. de 2022
- 5 min de leitura
Atualizado: 3 de set. de 2022
Embora, a mensagem posso ser interpretada como um desabafo, eu gostaria que o leitor interpretasse este artigo de uma forma cômica. Se não podemos rir das nossas "infelicidades", então não vale a pena continuar a repetí-las.
Cantar é bom para a mente; Faz bem aos pulmões, e alegra o coração.
Eu canto desde os nove anos de idade e adoro o desafio, o poder fazer as pessoas sorrir e sonhar acordadas.
Porém, cantar é das atividades mais difíceis e por isso não são muitas as pessoas que se atrevam a expôr-se ao criticismo público e preferem cantar só no chuveiro, e, se forem mais aventureiras, talvez no carro!

Para se cantar sāo necessário atributos que nenhuma outra atividade física e mental, exige de uma pessoa.
Pobre de nós cantores!
Pobre de nós cantores: usamos todo o corpo, incluindo os mais pequenos músculos para produzir som; Temos que nos mexer, temos que nos aguentar de pé; temos que fazer tudo para não desmaiar!
Pobre de nós cantores: rezamos para cada refeição não nos derreta as cordas vocais com a possível acidez dos aperitivos e do vinho, ou que o bife, que partimos em pedaços bem pequenos, que não fique atravessado; para que não tenhamos dores de barriga de comer tanta boa batata, arroz, comida deliciosa e pesada, esquece a salada que tem vinagre; e a tortura de ter que rejeitar a sobremesa pois provoca excesso de catarro e o pecado de pensar em tomar um café! Sim, tudo o que ingerimos afeta o nosso precioso canto.
Pobre de nós cantores: que na hora de mostrar prazer a cantar, lutamos contra a adrenalina, cortisol, testosterona, estrogênio, insulina, e todas as outras hormonas responsáveis pelo fight & flight, ou a resposta fisiológica do "Lutar ou Fugir". Como me diziam os meus professores "Só continua a sorrir que nada se passa"! Va diz-te a ti próprio "Nada se passa".
Pobre de nós cantores: que temos que interpretar uma serie de símbolos codificados, uma lingua própria, que é a música numa longa partitura e se tiverermos azar, temos que memorizar tudo, cantar uma vez e depois memorizas outras 3 horas de música. E agora, tens horas de estudo fechados sozinhos numa sala seca, um armário mesmo com um piano desafinado, e os barulhos dos vizinhos a bater na paredes, tetos e chão. Mas nada interessa pois no dia do concerto onde tudo vai sair certo, no ritmo, na nota, afinado, a performance perfeita! Aaaaaaah!
Neste exemplo, tenho que ler o texto em Português, que muita satisfação me dá, a minha lingua materna, mas, pobre de nós cantores: amanhā estou a cantar em Espanhol, Francês, Italiano, Inglês, Alemāo, Latin, Sanskrit, Russo... Russo não, pois ja não tenho mais espaço no meu pequeno cérebro para tantas línguas! E não esquecer que tenho que comunicar a mensagem - embora, por vezes com o pânico temos mesmo uma vergonhosa branca. La la la la, la la la la! Ah!
E tenho que agradar à cravista senāo tenho que carregar o cravo sozinho; tenho que agradar ao maestro que me manda gritar sobra uma orquestra de 90 instrumentos, violinos, contrabaixos, trompetes, trombones, oboes, tímpanos - é mesmo até arrebentar os tímpanos! Forte, piano, mais, demasiado, shhhhhh, esqueceste da entrada, olha para mim, que estas a fazer, não te ouço! aaaaaah! Eu também não me ouço!! aaaah!
E tenho que agradar ao director que me manda representar, "Eu sou o diretor, portanto dirige-se para aqui no tempo um da sua aria solo, na pausa vai beijar a soprano que esta 7 passos atras de ti, no compasso 43 és atacado pela bruxa que vem por cima - cuidado que a vassoura não esta presa, no compasso 67 começas a morrer em palco bem devagar ate ao compasso 128, [Meia musica a morrer?!] sim, ressuscitas no compasso 130, e voltas a morrer no último compasso, ali. Depois tens um black out onde tens que te arrastar para fora do palco pelo fundo direta pois temos a mudança de cenário a entrar pela ala esquerda. Percebeste? Nao me faca repetir! Que eu sou o diretor. - Sim, excelentíssimo diretor - digo eu em pânico pois não tive tempo para apontar nada do que tenho que fazer!
E o público! Pobre de nós cantores: o público! Que eu tenho que manter acordado, interessado, estimulado, extasiado! Uma fantasia onde eu estou a serenar tipo Romeu á Julieta na varanda "Bella, ma! baci, baci! mi amore" que me manda beijinhos e me faz olhinhos como quem quer vir la atras ao bastidores. E o pânico quando vejo os connoisseurs com a caneta na mão a apontar todos os erros na partitura; Ou o desespero em saber que o crítico de cultura do Jornal Expresso vem assistir e vai, claro está, escrever que eu fui um desastre e que o meu Dó sobre-agudo foi puxado e que a minha carreira está acabada mesmo antes de começar! Naaaaaaaaaaaao!
Pelo menos haja flores. Ha flores... ao final. Nāo hà flores?!
E por fim, pobre de nós cantores: não podemos esquecer de agradar as pessoas que vive connosco, o parceiro, os filhos, o cão, o peixe, o gato; os nossos pais, pois não ganhamos o suficiente para comprar casa própria, os amigos que restam - pois todos os outros desistiram depois de levar com o "nāo posso sair depois das dez; já sabes que estou a cantar aos sábados a noite; é domingo, dia de estar cansado, deprimido, sentir renegado, destituído, banzado, sem sentido, mais ados e idos que me fazem pensar porque escolhi ser cantor,? ah?! o resto da semana? oh, meus amigos, estou teso!; não esquecer de agradar aos colegas de profissão, colegas que geralmente se odeiam, ás 20 pessoas que me seguem no Facebook, ás 3 pessoas que subscreveram ao meu canal do YouTube, e os meus imaginários milhões de followers no instagram. Eu quero ser famooooooosooooo!!
Mas a fama não chega fácil, e depois de ter estourado todo o dinheiro do empréstimo dos meus pais para estudar na melhor escola de canto do mundo, só canto no verão, pois este trabalho é sazonal, e tenho que procurar um emprego num café durante o outono e inverno que chegam sempre demasiado rápido!
A mensagem que aqui escrevo e um retrato comíco mas verdadeiro, muitos dos meus amigos, com grandes vozes e muito talento, passam por isto. E fazemo-lo porque nós gostamos de cantar, fazemo-lo pela arte.
Cantar é mais abrir a boca e produzir som. O nosso treino é para desenvolver o dom mais difícil de desenvolver e para manter este instrumento frágil a funciona durante uma carreira idealmente longa..
As cordas vocais estão na faringe; estão numa região onde tudo pode correr mal. Eu nem me atrevo a beber o vinho e a comer arroz, caso vá pelo cano errado e, por consequência, tenha um ataque de tosse que entorse as cordas, arranha, ganha nódulos, caroços e, como o grande cantor Italiano Enrico Carosu, tussa tando até cuspir sangue no meio do palco! É verdade! Morreu feliz! A cantar literalmente até a última nota!
Cantar é como correr uma maratona todos os dias. Treina, perdura, estuda, vai ou raxa! E não te esqueças que tens 2000 pessoas novas todos os anos a entrar na corrida. Cantar e difícil.
Eu mesmo que apanhei COVID depois de dizer ao Sr Delfim que vinha fazer o concerto. O que me vale é que a Isabel é medica, e passou-me tanta medicação que me deixa a ver estrelas! WOW Isabel! Mais morfina! Brinco, a Isabel não me passou morfina para o concerto. É para depois do concerto!
Eu espero que quem venha ver o cantor, que saiba que nós adoramos cantar, que faremos sempre o nosso melhor - possível naquela hora - e que o fazemos por vocês, o nosso público, para vos fazer dançar, fazer amar, fazer recordar, fazer sonhar, entreter, só isso...só cantar...
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